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O dia em que a minha aliança caiu (e percebi que eu, e todos nós homens, não somos tão legais quanto supomos)

“As violências, de forma geral, são invisíveis para todos aqueles (e aquelas) que não as vivem.”- frase de autor desconhecido



No icônico diálogo do filme “O Sexto Sentido” (1999), o garoto de 8 anos, Cole Sear (Haley Joel Osment), a quem o psicólogo infantil Malcolm Crowe (protagonizado por Bruce Willis) tenta ajudar ao longo de toda a história, revela ao especialista: (Cole) "Eu vejo pessoas mortas". (Malcolm) "Nos seus sonhos?" (Cole) "Não". (Malcolm) "Quando você está acordado?" (Cole) "Sim". (Malcolm) "São pessoas mortas como em túmulos, em caixões?" (Cole) "Não. Andando por aí como pessoas normais. Elas não veem umas às outras. Elas só veem o que querem ver. Elas não sabem que estão mortas." (Malcolm) "Com que frequência você as vê?". (Cole) "O tempo todo". No final da genial trama, que catapultou a carreira do diretor de cinema M. Night Shyamalan, acontece uma brusca reviravolta quando o personagem interpretado por Bruce Willis descobre uma realidade chocante, completamente diferente da que acreditava existir. Ao ver sua própria aliança subitamente cair da mão de sua esposa e rolar pelo chão à sua frente, o psicólogo começa a se dar conta de que, na verdade, ele mesmo era um dos fantasmas que o jovem Cole enxergava e com quem conversava. Malcolm, então, finalmente realiza que já estava morto há algum tempo, assassinado por um ex-paciente transtornado que invadiu sua casa, deu-lhe um tiro e em seguida cometeu suicídio, tudo na frente da sua mulher. Ou seja, apesar dos inúmeros sinais e pistas deixados em diversas cenas ao longo do enredo, foi só naquele momento que a ficha caiu para todos, tanto o protagonista do filme como a audiência (na qual me incluo). Até ali, todos interpretavam os acontecimentos com outro olhar, e por isso se viram surpreendidos por uma outra perspectiva sobre aqueles mesmos fatos e cenas que haviam vivido e assistido, entendendo que Malcolm estava morto desde o início da história.


A jornada das descobertas


Assim como em “O Sexto Sentido”, ao longo da minha vida pessoal de pouco mais de cinco décadas até aqui, em muitas situações me caiu uma ficha e me dei conta de que estava vendo as coisas sob o prisma errado. Mas nenhuma dessas situações me chocou e continua me chocando tanto como nas questões relacionadas ao tema das desigualdades de direitos, discriminações e diversas formas de violências contra mulheres e meninas.


Igual ao jovem Cole no filme, que vê o que muitos não conseguem ou não querem enxergar, eu também comecei a perceber uma nova verdade: realidades dolorosas e invisíveis sobre a desigualdade de gênero, a discriminação e as violências sistemáticas contra mulheres e meninas. Essas questões, muitas vezes ignoradas ou subestimadas, ganharam destaque para mim durante a pandemia de Covid-19, quando os casos de violência doméstica explodiram, enchendo manchetes e exposições midiáticas. Foi um momento de choque e de revelação: a ficha finalmente caiu.


A partir desse momento, comecei uma jornada de descobertas, confrontando minhas próprias ignorâncias e preconceitos. Notícias sobre o aumento das ocorrências de violência doméstica, que somam cerca de 18 milhões de casos anuais no Brasil, me fizeram enxergar o horror que estava bem diante dos meus olhos. Além disso, números alarmantes como os quase 800 mil estupros ocorridos anualmente no país trouxeram à tona a brutal realidade enfrentada por muitas mulheres.


Conversei com amigas, ouvi especialistas, li estudos e mergulhei em dados sobre o tema. Descobri que até seis anos atrás não havia sequer banheiro feminino na plenária do Senado Nacional, um símbolo claro de uma exclusão estrutural que permeia todos os níveis da nossa sociedade. Fiquei surpreso ao saber que, antes da Lei Maria da Penha, os casos de violência doméstica eram tratados em juizados especiais, como se fossem pequenas infrações. Isso tudo me forçou a revisar meu entendimento sobre muitas questões e a confrontar os preconceitos que havia construído ao longo da vida, baseados nos valores machistas aprendidos em uma sociedade patriarcal.


Como homem branco, heterossexual e com todos os privilégios que esses rótulos implicam, reconheço que cresci cercado por uma visão limitada e distorcida das realidades enfrentadas por mulheres e meninas. Eu não via — ou talvez não queria ver —as "pessoas mortas" ao meu redor: as histórias de opressão, dor e injustiça que eram ignoradas ou silenciadas.


Revendo e reconstruindo meus entendimentos e valores


Após a queda da ficha, ao ter acesso a informações, números e a uma realidade estarrecedora, comecei a revisitar casos que ocorreram dentro da minha própria família e percebi que praticamente todas as mulheres — se não todas, de fato —, das mais diversas gerações, já haviam sido vítimas de múltiplos tipos de violência. Fiquei chocado ao me dar conta de histórias de irmãos que abusaram de irmãs ainda crianças, de mulheres que sofreram assédios como ejaculação em ônibus durante a adolescência e de convites indecentes de chefes no trabalho. Foi como abrir a Caixa de Pandora. Ao conversar com amigas e conhecidas, descobri que muitas delas também viveram relações abusivas e violentas, foram agredidas por seus companheiros até na frente dos filhos, sofreram abusos em casa por parte de seus próprios pais, avós e tios, por amigos e desconhecidos em festas, no transporte público, e que algumas, como mecanismo de defesa, até andavam com agulhas de tricô para se protegerem de abusadores. Ouvi relatos de mulheres que abandonaram trabalhos, desistiram de carreiras no vôlei, abriram mão de oportunidades profissionais em muitos trabalhos para não se submeterem a agressões nos mais diversos ambientes. A quantidade de casos é incontável, e a realidade parece atingir todas as mulheres.


Ao longo dessa trajetória de aprendizados, descobertas e auto descobertas, comecei a rever meus valores e muitos dos fatos vividos por mim e por pessoas próximas, familiares e amigas. Recordo-me de uma conversa, da qual hoje me envergonho profundamente, em que questionei uma amiga querida sobre a ausência de mulheres destacadas na filosofia, psicologia, medicina, ciências, artes e esportes. Citei nomes como Platão, Sócrates, Victor Hugo, Albert Einstein, Newton, Galileo Galilei, Hipócrates, Hércules, Sigmund Freud, Pablo Picasso, Van Gogh, Pelé, Ayrton Senna, entre outros, e perguntei a ela (em tom de desafio), por que não havia mulheres nessas listas. Naquele momento, eu não tinha pleno conhecimento da verdade e adotava uma postura machista, ignorando completamente como as mulheres, ao longo da história, foram sistematicamente privadas pelos homens de acessar a educação, o trabalho e a vida social, bloqueando-as de se desenvolverem plenamente.


Hoje, reconheço minha absoluta ignorância e a agressividade implícita naquele questionamento. Aprendi que, mesmo nessas condições adversas, incluindo o assédio e abusos, muitas mulheres conseguiram se destacar e contribuir significativamente para todas as áreas do conhecimento, ajudando a evolução da humanidade. No entanto, muitas delas tiveram suas contribuições usurpadas ou foram simplesmente apagadas da história. Entre tantas outras, hoje reconheço mulheres como Marie Curie, Hipátia de Alexandria, Karen Horney, Mary Anning, Rosalind Franklin, Hedy Lamarr, Frida Kahlo, Simone de Beauvoir, Ada Lovelace, Tarsila do Amaral, e Clarice Lispector, cujas histórias e feitos antes eu ignorava.


Outras situações que hoje me envergonham foram as inúmeras frases machistas que repeti por muito tempo, como: "Mulher foi feita para esquentar a barriga no fogão e esfriar no tanque", "Cada um que cuide das suas cabras que meu bode está solto", ou "Ah, agora você virou fornecedor de artigos finos para homens" e “Agora vai pagar seus pecados”, ambas brincando com amigos que tinham sido pais de meninas. Tais expressões, que antes pareciam "brincadeiras inofensivas" (mas não eram, reconheço), hoje são inconcebíveis no meu entendimento, e sinto um profundo arrependimento por tê-las dito.


Novas vivências, velhos padrões


Atualmente, nas rodas de conversa com familiares, amigos e colegas de trabalho, mais uma vez me sinto como o personagem Cole de “O Sexto Sentido”, vendo uma realidade que a maioria das pessoas parece não enxergar, mesmo quando ela está bem diante de seus olhos. Fico espantado com o quanto os valores machistas e patriarcais, os preconceitos, a falta de informação e as distorções propagadas estão enraizados nas mentes das pessoas, especialmente dos homens, mas também de muitas mulheres criadas sob a mesma cultura patriarcal.


Recentemente, em um debate familiar, discutíamos a denúncia de duplo estupro feita por uma atriz contra o ator Gerard Depardieu. Rapidamente, alguns homens na conversa mencionaram um comentarista francês que questionou como ela poderia ter sido estuprada uma vez e ainda assim retornado ao apartamento do ator para o segundo estupro.


Com base nos muitos aprendizados que tenho tido, destaquei que era crucial entender o contexto (normalmente complexo, envolvendo relações de poder, dependência emocional ou financeira, entre outras) que os fatos ocorreram e que esse tipo de questionamento carrega um viés machista, sugerindo implicitamente uma dúvida sobre a veracidade da denúncia ou insinuando suspeitas sobre o comportamento e as intenções da denunciante. A partir daí, o debate se intensificou e se transformou em uma discussão acalorada. Alguns argumentaram que, se o crime ocorre uma vez, é crime, mas na segunda, seria imprudência da vítima. Afirmaram ainda que, embora crime seja crime, muitas vezes as mulheres querem se beneficiar ou se colocam em situações provocativas, sabendo o que pode acontecer, e depois querem recuar ou processar.


Hoje, eu penso de forma diferente e me espanto com esse tipo de pensamento, pois nada está acima do direito à tutela individual de cada pessoa sobre seu próprio corpo e suas vontades. Acredito que esse é o caminho para um salto civilizatório necessário. No entanto, a resposta que obtive foi que "não é assim que as coisas acontecem na realidade" e que eu havia me tornado uma pessoa "radical" em relação ao tema. Alegaram ainda que precisamos entender que o ser humano é "um animal", e, a partir desse ponto, a discussão se perdeu em meio às visões e valores machistas que ainda marcam profundamente a nossa sociedade.


Reconhecer esses padrões de pensamento e confrontá-los é parte essencial do processo de mudança. A resistência ao novo olhar e ao entendimento da igualdade de direitos apenas reforça a necessidade de continuarmos questionando e reconstruindo essas visões enraizadas, para que possamos avançar rumo a uma sociedade mais justa e igualitária.



* Guilherme Torres é um homem branco, heterossexual, de 52 anos, casado com a Renata, pai do Rafael, de 23 anos, da Maria Eduarda, de 20 anos e do Leonardo de 18 anos. É empresário, sócio de uma startup de impacto social e integrante do Movimento Por Elas, coletivo que atua pelo enfrentamento a todos os tipos de violências contra mulheres e meninas.





Gostaria de saber mais sobre o trabalho do Guilherme em prol das mulheres?



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