Há tempestades que vêm para nos ensinar.
Faz tempo que eu sei que preciso aprender uma lição, e na mesma proporção de tempo, venho tentando aprendê-la, tateando caminhos, sem saber exatamente como fazer.
Você já foi perseguido por um texto, uma mensagem, um conceito? Pois bem, eu já, e para mim o “ame ao teu próximo como a ti mesmo” é um deles.
Durante boa parte da minha vida tentei entender quem eu era, oscilando entre o que eu sentia, o que os outros diziam, e o que eu mesma dizia a meu respeito. A visão por vezes se tornara mais clara, às vezes turva, às vezes escura como a noite, e agora, como o amanhecer, clara como o dia.
Conhecer e se reconhecer não acontece de uma hora para a outra. Leva tempo, pede sensibilidade, coragem, persistência e resiliência. Ouvimos tantas vozes nos dizendo quem fomos, somos ou deveríamos ser. Tudo bem, está todo mundo vivendo no mesmo planeta, enfrentando suas batalhas e talvez tentando se descobrir também. Mas até onde podemos permitir que nos digam quem devemos ser?
Por muito tempo caminhei na sombra dos códigos de conduta sem sequer compreendê-los. Obviamente vivi os benefícios e alegrias de uma vida regrada, correta, bondosa, piedosa, paciente, longânime, perdoadora e servidora. Sim, busquei e ainda busco viver uma vida com sentido, que não faça mal aos outros, muito pelo contrário, que seja abençoadora para quem cruzar o meu caminho. A questão é que isso me trouxe uma série de conceitos equivocados a respeito de até onde vai o amor e a doação ao próximo, a abnegação e o serviço, a confiança inocente, e por muitas vezes, imprudente. “Inocente como a pomba, astuta como a serpente”, outro texto que me persegue e que considero bem desafiador. Qual é o limite entre a inocência e a astúcia, a confiança e a desconfiança, o amor ao outro e o amor a mim mesma. Extremos, opostos, ou uma jornada de fé e amor resiliente?
Como equilibrar os sins e os nãos? Como medir até onde nos expomos e até onde permitimos que nos acessem? Como servir e amar as pessoas, sem com isso deixar a porta aberta para o desrespeito? Como ser humilde sem se permitir ser humilhado, ou inocente sem se permitir ser enganado?
Longe de querer sentar na cadeira da vitimização, meus questionamentos giram em torno de uma questão principal, a lição que essa tempestade trouxe consigo, que é sobre quem eu sou, quem dizem que eu sou ou deveria ser, e quem eu quero ser e o que quero ter.
Quebrar padrões hereditários, romper ciclos, usos, costumes, hábitos, pede que tenhamos consciência da nossa caminhada, reconhecendo os contextos, as relações e os ambientes que nos influenciaram. Temos em nós o poder de escolher se queremos permanecer nos mesmos lugares e papéis que nos colocaram, ou que nós mesmos decidimos ocupar. Podemos mudar e nos tornarmos quem queremos ser. Podemos mudar de comportamento, de cidade, de emprego, de casa, de tamanho... sim, de tamanho!
Durante a minha trajetória de vida aprendi que conflitos eram ruins. Em essência, de fato, nunca gostei deles. Vozes alteradas, caras fechadas, raiva, ódio, palavras duras, indiferença, ignorância, frio na espinha, lágrimas no rosto. Essa sempre foi a imagem da palavra conflito para mim, portanto, sempre fugi deles quando eu era a pessoa envolvida. Deixe-me apenas explicar o que significa fugir aqui. Calar, abaixar a cabeça, assumir a culpa, o dano, fazer o que precisava ser feito para que o agente do conflito fosse atendido em seu desejo pela razão, e de forma permissiva e sem limites, receber palavras e expressões sem barreiras de autoproteção. Um prato cheio para relações abusivas e de dependência emocional.
Quando se tratava de conflitos de terceiros, eu sempre tentava apaziguar, entendendo que eu estava pacificando a situação. Me enganei por muito tempo achando que apaziguar faria o conflito parar e, portanto, não voltar a acontecer. Não conseguia não me envolver para tentar resolver e fazer as pessoas logo voltarem a ficarem bem, em paz e amor. Foi quando me dei conta de que isso não fazia com que os conflitos parassem, mas continuassem de forma cíclica, por vezes ainda piores.
Em um determinado momento, aprendi que existem conflitos produtivos, e, se bem vividos, têm o poder de transformar relacionamentos. Para isso precisei viajar para dentro de mim e revisitar meus padrões de comportamento, para então começar a me posicionar diante dos novos e inevitáveis conflitos da vida. Aliás, antes mesmo deles chegarem, percebi que algumas escolhas ou comportamentos meus poderiam inclusive despertá-los, portanto a lição também incluiu uma postura ainda mais consciente das escolhas que comecei a fazer, sabendo que eles viriam. Alguns deles aconteceram porque optei por não mais ocultar meus sentimentos, outros vieram por limites que coloquei, outros por me posicionar diante de cenários que eu não concordava. Sim, descobri que tenho o direito de discordar e dizer isso, apesar de saber que não sou a dona da verdade do mundo, mas sou a dona da verdade que carrego em mim. Descobri que me omitir em nome do bem-estar coletivo me causava mal-estar, adoecia a minha alma e meu corpo. Entendi que posso me expressar sem querer ganhar as batalhas, apenas ser respeitada como pessoa, humana, adulta, que possui uma identidade única, assim como todos os outros humanos. Aprendi que devo respeitar as diferenças, inclusive as minhas. Aprendi que não sou superior a ninguém, mas também não sou inferior.
Aos poucos comecei a compreender os danos causados pela anulação e repressão, que de forma autorresponsável, assumo que foi a maneira como vivi minha vida por um bom tempo. Fiz o que sabia, com o que tinha na bagagem e nas mãos. A partir daí, escolhi um caminho que por vezes é doloroso, pela resistência encontrada ao desconstruir expectativas e romper meu próprio modus operandi.
Então, diante dos novos conflitos que por vezes se parecem com impetuosas tempestades, tenho me consultado sobre o que sinto, penso, sobre o que meu coração me diz, sobre o que meu espírito me sinaliza, antes de ouvir todas as vozes ao meu redor. Porque no fim de tudo, é sempre sobre a gente, não é sobre os outros.
Por fim, entendi que desejo viver a vida podendo ser eu mesma, sabendo que todos têm o mesmo direito e que cabe a mim respeitar suas escolhas e limites, assim como devo e posso respeitar os meus, sinalizando aos outros quando me sentir desrespeitada. Aprendi que nas relações onde há amor verdadeiro, cabem tantos outros sentimentos, e alguns deles aparentemente não são confortáveis de serem percebidos. Mas me pergunto, escondê-los vai fazer com que desapareçam? Provavelmente não. Já trazê-los para a luz, aumentará a chance de as relações serem ainda mais verdadeiras, transparentes, fortes e sólidas. Como diz um outro texto que tem me acompanhado, “no que depender de vós, tenha paz com todos”. Então, no que depender de mim, seja por meio de relações harmoniosas, seja por meio de conflitos produtivos, assim será.
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